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A evolução do monitoramento e controle na era dos dados

Prof. Wellington Sena

 

O conceito de Panóptico Digital é uma adaptação contemporânea da ideia original do Panóptico, concebido pelo filósofo Jeremy Bentham no final do século XVIII. No modelo arquitetônico de Bentham, uma única torre central permitia que um vigia observasse todos os prisioneiros de uma instalação sem que eles soubessem quando estavam sendo monitorados. Esse esquema gerava um estado constante de vigilância presumida, forçando os indivíduos a conformarem seus comportamentos mesmo na ausência de uma supervisão ativa. Na era digital, esse princípio evoluiu para um sistema global de coleta de dados e monitoramento, onde cada clique, interação e movimento online pode ser rastreado e analisado por corporações e governos, consolidando uma forma de controle invisível, mas amplamente eficaz.

Com a explosão da tecnologia digital no final do século XX e início do XXI, a internet se tornou a plataforma ideal para implementar um modelo de vigilância massiva. Empresas de tecnologia como Google, Facebook, Amazon e Apple lideraram essa transformação ao criar ecossistemas digitais que capturam dados de bilhões de usuários. Esses dados vão desde informações básicas, como nomes e endereços, até padrões complexos de comportamento, incluindo preferências políticas, redes sociais, hábitos de consumo e até estados emocionais. Em 2020, um estudo revelou que 90% dos dados mundiais haviam sido gerados nos últimos dois anos, destacando a magnitude da coleta de informações na era moderna.

No Panóptico Digital, a torre central de vigilância foi substituída por algoritmos avançados e inteligência artificial, que analisam volumes massivos de dados em tempo real. Plataformas como o Google utilizam algoritmos para mapear padrões de comportamento e prever ações futuras, permitindo que anúncios e conteúdos sejam personalizados para cada indivíduo. Enquanto isso, redes sociais como o Facebook criam bolhas informativas que reforçam preferências e isolam indivíduos em mundos digitais cuidadosamente curados. Esses mecanismos, embora projetados para melhorar a experiência do usuário, também consolidam o poder das corporações e criam um ambiente onde a privacidade se torna uma ilusão.

O advento de dispositivos conectados, como smartphones, assistentes virtuais e wearables, ampliou ainda mais o alcance do Panóptico Digital. Ferramentas como o Google Maps rastreiam localizações em tempo real, enquanto dispositivos como o Alexa e o Siri monitoram conversas e atividades dentro de casa. Em 2019, foi revelado que empresas como a Amazon e a Apple haviam contratado equipes humanas para analisar gravações feitas por assistentes virtuais, muitas vezes sem o consentimento explícito dos usuários. Essas práticas levantaram preocupações significativas sobre a invasão de privacidade e o uso de dados para fins que vão além do que é divulgado publicamente.

Governos também adotaram o Panóptico Digital como ferramenta de controle. Após os ataques de 11 de setembro de 2001, a vigilância em massa foi justificada como uma necessidade para combater o terrorismo. Programas como o Prism, da NSA (Agência de Segurança Nacional), e o XKeyscore coletaram dados de comunicações digitais em escala global, com a colaboração de empresas de tecnologia.

Em 2013, as revelações de Edward Snowden mostraram como esses programas monitoravam não apenas suspeitos de terrorismo, mas também cidadãos comuns, líderes políticos estrangeiros e organizações internacionais, demonstrando a escala e a abrangência do sistema.

O Panóptico Digital também transcende as fronteiras dos Estados Unidos. Países como a China adotaram o modelo de vigilância digital para implementar sistemas de controle social. O controverso sistema de “crédito social” chinês combina dados de redes sociais, transações financeiras e vigilância física para atribuir pontuações aos cidadãos com base em seu comportamento. Aqueles com pontuações baixas enfrentam restrições no acesso a serviços públicos, transporte e até oportunidades de emprego, exemplificando como o Panóptico Digital pode ser usado para condicionar comportamentos e restringir liberdades individuais.

Além disso, o modelo de vigilância digital é amplamente sustentado pelo capitalismo de vigilância, um termo cunhado por Shoshana Zuboff para descrever a prática de transformar dados pessoais em produtos lucrativos. Empresas de tecnologia capturam e analisam dados para criar perfis detalhados que são vendidos para anunciantes, permitindo que marcas alcancem consumidores de maneira extremamente segmentada. Em 2022, o mercado global de publicidade digital ultrapassou US$ 500 bilhões, com empresas como o Google e o Facebook capturando mais de 60% dessa receita. Essa economia de dados não apenas consolida o poder das Big Tech, mas também incentiva práticas que priorizam o lucro acima da proteção da privacidade.

A evolução do Panóptico Digital também tem implicações profundas para as democracias. Ao moldar narrativas e manipular informações, as plataformas digitais influenciam processos eleitorais e a opinião pública. A eleição presidencial dos Estados Unidos em 2016 e o referendo do Brexit em 2016 destacaram como a coleta de dados foi usada para segmentar eleitores e disseminar desinformação. A Cambridge Analytica, em colaboração com o Facebook, explorou dados de milhões de usuários para criar campanhas políticas altamente direcionadas, demonstrando o potencial do Panóptico Digital para manipular resultados democráticos.

No entanto, o impacto do Panóptico Digital não se limita à esfera política. Ele também redefine a relação entre indivíduos e instituições, criando um ambiente onde as pessoas internalizam a vigilância e ajustam seus comportamentos em conformidade com normas invisíveis. Essa forma de controle psicológico, conhecida como “autovigilância”, é amplificada por métricas digitais que transformam cada interação em um dado mensurável. Desde curtidas em redes sociais até passos monitorados por dispositivos de fitness, os indivíduos são encorajados a medir e otimizar suas ações, muitas vezes em benefício das empresas que coletam esses dados.

Em última análise, o Panóptico Digital representa uma evolução significativa no modelo de vigilância e controle. Ele combina o alcance global da tecnologia com a capacidade analítica da inteligência artificial, criando um sistema que não apenas observa, mas também influencia e condiciona comportamentos. À medida que o volume de dados gerados continua a crescer, o poder das corporações e governos que controlam esses fluxos se expande, desafiando os limites da privacidade e da liberdade em um mundo cada vez mais conectado.

Fonte: DEEP STATE – E AS FACÇÕES QUE DOMINAM O MUNDO (Sena, Wellington. 2024, Amazon)